29 julho, 2007

Senado contra democracia

Dalmo Dallari (Jornal do Brasil, 07/07/07)

O modelo de Senado incorporado ao sistema político brasileiro pela Constituição de 1891 surgiu no momento em que as antigas colônias inglesas da América estavam definindo a forma de governo do novo Estado, resultante da independência das ex-colônias. Qual terá sido a verdadeira razão para a criação de um Legislativo bicameral, se o que importava era a existência de um Legislativo que expressasse a vontade do povo? Não bastaria uma só Câmara, a dos Deputados, para a garantia do caráter democrático do governo? Uma das alegações para a criação da segunda Câmara foi que os Estados do Sul eram muito menos populosos e se fosse aplicada a regra democrática "um eleitor, um voto" os Estados sulistas elegeriam um número muito menor de deputados e ficariam em minoria no Legislativo. Por isso, como alguns argumentaram, era necessário que houvesse uma segunda Câmara, na qual todos os Estados tivessem igual número de representantes, podendo, assim, neutralizar a vantagem numérica dos Estados mais populosos na Câmara dos Deputados. E assim surgiu o Senado, cujos membros representantes dos menores Estados são eleitos com um número de votos muitas vezes inferior ao que é necessário para a eleição dos deputados estaduais dos Estados mais populosos.

Comentando essas características do Senado, Robert A. Dahl, professor da Universidade de Yale chega a uma conclusão muito esclarecedora: o Senado foi criado para os senhores de escravos, que correriam o risco de ver extinta a escravidão se uma decisão em tal sentido dependesse apenas da Câmara dos Deputados. O conjunto dos senadores dos Estados escravocratas daria número suficiente para impedir que se convertesse em lei uma proposta abolicionista aprovada na Câmara dos Deputados. Falou-se, naquela ocasião, que o Senado era necessário para a proteção das minorias, mas quem recebeu a proteção, segundo observa Dahl, foram as minorias privilegiadas. Graças ao artifício da criação do Senado, a escravidão negra durou ainda 80 anos nos Estados Unidos, convivendo com uma Constituição inspirada em princípios liberais e democráticos. Muito significativamente, a obra de Dahl em que são feitos esses comentários denomina-se How democratic is the american Constitution?, ou seja, quão democrática é a Constituição americana. Com base nessas considerações ele conclui que o Senado, pelo processo de escolha de seus membros, é um componente não democrático da Constituição dos Estados Unidos. Outro estadunidense estudioso dos sistemas políticos, Alfred Stepan, cujo trabalho é referido por Dahl, abordou a mesma questão e fez um estudo comparativo, observando que os dois senadores do Estado de Connecticut representavam 3,4 milhões eleitores, enquanto os dois senadores do Estado de Nova York representavam 19 milhões de eleitores. O Estado de Nevada, que no ano de 2000 tinha 2 milhões de habitantes, contava com dois senadores para representar seus interesses, na mesma ocasião em que o Estado da Califórnia, com 34 milhões de habitantes, só contava, também, com dois representantes no Senado. Concluindo a comparação, Stepan assinala que a maior desproporção na representação dos Estados estava no Brasil, na Argentina e na Rússia.

O Brasil precisa, realmente, de um Senado para proteger minorias? Além da desproporção evidentemente antidemocrática já assinalada, a escolha dos senadores brasileiros apresenta ainda outra distorção grave, que é a escolha conjunta de um suplente para cada senador, com a peculiaridade notória que na maioria dos casos os eleitores não têm a mínima idéia de quem seja o suplente, que freqüentemente é um parente próximo ou um subordinado ou associado do candidato a senador. Por todos esses motivos, bem como pela circunstância, também evidente, de que o Senado, em grande número de casos, tem-se caracterizado como um reduto de oligarcas protetores de seus interesses nos respectivos Estados, é mais do que tempo de se abrir uma discussão ampla sobre o papel do Senado no sistema político brasileiro, a fim de que sejam adotadas mudanças fundamentais, de caráter democrático e moralizador.

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